Um conto do poeta miguel neves

BAGAÇO
O pedaço de cana bateu violentamente na
beira do cercado de bambu, o impacto foi tão
violento que os gomos da cana se espatifaram
em várias direções, sendo que seu arremessador
gritava aos brados:
- Quantas vezes eu vou ter que falar para vocês,
seus porcos, que hoje não tem comida, quantas
vezes terei que debulhar cana no lombo de vocês,
agora vê se dormem, seus malditos!
Assim que terminou seu discurso bravo, o
homem saiu de perto do cercado, andou alguns
metros e entrou em um barraco improvisado,
colocou a espingarda perto da rede,
sacou de um longo punhal e cortou do varal
um pedaço de lingüiça defumada, cortou um
bom pedaço e comeu crua e sem sal, já estava
salgada, ao lado um garrafa de cachaça,
pegou, abriu e tomou um longo trago.
Sentou-se na rede, acendeu um cigarro de
palha, tirou alguma baforadas e por fi m apagou
no chão bruto da terra e logo estava a dormir.
O cheiro da fumaça e da pinga voou de carona
na brisa em toda a região e no breu da
escuridão chegou até o cercado e entrou pelas
narinas de quem estava lá dentro e um
sussurro se fez ouvir.
- Sentiu, Antonio, é pinga e cigarro!
Outra voz mais baixa respondeu censurando!
- Cala a boca, Bagaço, você quer acordar
o homem!
- Juro que não! Olha, o tempo está fechando,
acho que hoje dá!
- Torce para chover.
A treva se fez dia no forte raio que rasgou
a noite e logo as trovoadas acompanharam
a dança da chuva que caía mansamente e
aos poucos foi aumentando até se tornar
um só barulho.
Entre um raio e outro que iluminava a noite,
sombras frágeis e debilitadas se esgueiravam
dentro do cercado de bambu e logo tentavam
desesperadamente fazer com que uma daquelas
paliçadas se rompesse e os libertasse
daquele cativeiro imundo que mais se parecia
com um enorme e repugnante chiqueiro.
- Força, Antonio!
- Força, Bagaço, vai, força homem!
Aos poucos o pedaço do bambu se rompeu
e um barulho de madeira quebrando estrondou,
por sorte um raio rasgou o céu no exato
momento que se deu o barulho.
Lá no barraco o homem acordou, deu uma
olhada pela fresta, não viu nada de anormal
por causa da forte chuva, resolveu voltar a
dormir, murmurando.
- Maldita chuva!
Pelo buraco e em meio à lama eles rastejavam
lentamente parecendo cobras e se dirigiam
para o canavial próximo deles, logo estavam correndo,
levando cana no peito, sentindo as folhas cortarem-lhes o rosto,
mas já estavam acostumados com as feridas que a cana
produz em quem as corta.
- Corre, Antonio, vamos embora!
- Nós vai morrer, não existe saída deste canavial, Bagaço!
- Claro que existe, homem, vamos aproveitar a noite e sumir!
- Lá atrás, no barraco, o homem dormia a sono solto, quando um
raio caiu ali perto, fazendo com que acordasse novamente, levantou,
urinou pelo buraco que tinha na parede e voltou a dormir.
Do alto do pé de Santa Bárbara, Bagaço olhava para o norte,
voltava a cabeça para o sul e não via nada que não fosse cana.
Quando lá de baixo Antonio gritou:
- Viu alguma coisa, Bagaço?
- Ainda não, mas vamos seguir para o sul!
Logo os dois estavam a caminhar por entre o extenso canavial,
andaram minutos sem falar nada um com o outro, quando
Antonio disse:
- Acho melhor voltarmos!
Bagaço respondeu furiosamente:
- Para sermos tratados como porcos, negativo, vamos continuar,
nós vamos conseguir!
- Eu acho que não, minha perna está dormente, não consigo
senti-la!
Bagaço deu uma olhada na perna de Antonio, realmente a perna
estava feia, o inchaço já tinha tomado conta, e os pés estavam
em carne viva, mesmo assim fi ngiu estar tudo bem e disse:
- É normal, a gente andou demais, vamos descansar um pouco!
Deixaram-se cair no meio do canavial, estavam famintos,
exaustos, mas o pior era a sede; para enganá-la, arrancavam
a cana e tirava da raiz um pouco do suco.
- Como a gente foi cair nessa! - Perguntava Antonio a Bagaço.
- Bobeira, né, lá em São Paulo, tava difícil, mas nem tanto assim!
- E o desgraçado do “gato” falou que a gente ia fazer fortuna!
- E o maldito acabou foi jogando nóis num cativeiro, feito porco!
- Pior!
- Se eu sair dessa, vou voltar pra escola, vou fazer curso,
quem sabe até me casar com a Iracema!
- Só no apuro você diz isso, garanto que quando chegarmos em
São Paulo você vai voltar a ser o mesmo Bagaço de sempre!
- Mas uma coisa é certa que vou fazer, quando lá chegar,
vou direto na federal e vou meter aquele cara na cadeia.
- Dois!
Embora cansados os dois amigos passaram horas a conversar
sem perceber que a noite chegara e logo estavam a
dormir, por teto as estrelas e o frio da noite como cobertor.
O barulho era pequeno, mas Bagaço escutou, rolou para
perto de Antonio e o cutucou, cutucou e o amigo não se mexeu,
então Bagaço falou baixinho:
- Antonio, tem gente vindo pra cá, vamos embora. Chamou
mais umas três vezes e nada, desconfi ou do silêncio do amigo,
pôs a mão no peito e ele estava gelado, o coração batia
muito fraco, escutou que Antonio murmurou algo, pôs o ouvido
nos lábios do amigo e escutou:
- Não consigo mais, Bagaço, meu corpo inteiro travou, vai
você meu amigo.
- Não, Antonio, eu não vou sem você!
- Não tem jeito, deixe me aqui e vá.
Sem responder às lamúrias do amigo, Bagaço o levantou,
jogou nas costas e começou a se distanciar. Quem visse a forma
grotesca das sombras dos dois atravessando o canavial,
acharia até cômico se não soubesse da história.
- Nós vamos sair dessa e eu vou pagar um porre de cerveja,
lá no boteco do Costa, você vai ver, Antonio!
Assim Bagaço ia levando o amigo, já não tinha mais forças,
mas teimava e até se gabava.
- Eu te levo, Antonio, tô acostumado a cortar toneladas de cana
na mão limpa, não vou agüentar com você? Claro que agüento!
Parou para descansar, foi aí que viu que seu esforço tinha
sido em vão, que suas palavras tinham se perdido na noite,
olhou para o amigo, o sol iluminou-lhe o rosto; agora ele estava
sereno, tinha uma expressão de paz, ele estava morto.
Bagaço não falou nada, nem uma oração lembrou que poderia
fazer, olhou para o céu como se perguntasse a Deus por
que tanta injustiça e com raiva chutou violentamente os pés de
cana, arrancava, mordia, gritava e por fi m exausto, caiu ao lado
do amigo e embora sabendo que não podia escutar disse-lhe:
- Vou ter que lhe deixar, nem um enterro digno posso lhe dar,
mas juro que vou fazer com que aquele desgraçado pague.
Cobriu o amigo com folhas de cana, e partiu sem olhar para trás.
O tiro saiu quase que a queima roupa, caiu gemendo de dor,
rolando pelo chão.
Quem atirou voltava a engatilhar a arma e xingava desvairadamente:
- Seu cachorro, eu não mandei você cuidar daqueles porcos imbecis,
como você foi deixá-los escaparem, cachorro sem vergonha!
Mesmo baleado o ferido tentava se arrastar por entre o canavial,
um novo tiro fez com que fi casse imóvel.
Então seu executor o arrastou a um velho barraco improvisado,
foi até um pequeno avião que estava ali perto num aeroporto
clandestino, pegou um galão de gasolina e meteu fogo em tudo,
queimou o barraco, queimou as paliçadas de bambu, e depois
que viu que tinha queimado tudo, se dirigiu para o avião e logo
estava sobrevoando, milhares e milhares de canaviais.
Lá em baixo, em algum lugar, Bagaço continuava sua
caminhada, viu quando um avião branco passou, rasgando
os céus, deu com a mão, com muito esforço
correu tentando erguer os braços e gritou por socorro,
mas pensou que no meio de tanta cana ninguém
iria vê-lo, tropeçou, caiu e fi cou lá chorando.
“Trabalhador paulista consegue escapar de cativeiro”.
Essa era a capa de todos os jornais de São Paulo,
lá estava Bagaço todo enfaixado, dizendo que iria à
Policia e como é que foram parar lá no cativeiro.
Em um escritório do décimo quinto andar, alguém
lia as notícias e num sorriso cínico murmurava
entre dentes:
- Que imbecil esse Bagaço, ele pensa que vai
achar provas contra mim, grande bobo, o meu progresso
e minha fortuna têm que ser os maiores do
mundo, não importa a quem doer!
Bagaço
* Poeta, escritor, diretor teatral e acadêmico de psicologia
(por
Oniodi Gregolin*
GAZETA

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