(por Miguel
Joaquim das Neves*
(por
Antes de o galo cantar ele já estava de pé. Fez o fogo,
e, enquanto a água esquentava para o café, ele cortava
alguns pedaços de rapadura e esquentava alguns pedaços
de mandioca que sobraram da janta. Depois da forte
bebida, arrumou sua bolsa a tiracolo e pôs o pé no carreiro.
Ia descalço, levava as botas na mão, hoje ele as tinha
engraxado e não queria molhá-las com o sereno do amanhecer.
Olhou para o céu e percebeu que ia chover, mesmo
assim não apurou o passo, sabia exatamente quanto
tempo levaria da sua humilde palhoça até a pequena escolinha
improvisada em que já há dois anos lecionava.
Mas o céu trovoou e uma leve chuva desceu do céu e logo
se fez forte. Procurou abrigo embaixo de uma grande árvore,
mesmo sabendo que poderia ser vítima de um raio,
melhor arriscar do que levar pedradas na cabeça, pensou.
Ficou lá sentado olhando a chuva e viajou no tempo em
que morava na cidade grande, estudou e não conseguiu
terminar o último ano, era bom aluno, mas algo fez com
que não conseguisse seguir seus planos de formação superior.
Então as pedras começaram a cair do céu numa
velocidade incrível, se protegeu como pode. Logo viu que
tudo se acalmava, a bota estava encharcada, a roupa
também, se pôs a caminhar e três horas depois estava na
escolinha, entrou, colocou o material no seu devido lugar;
deixou a bota lá fora, a roupa secou no corpo.
Então eles foram chegando, eram mamelucos, índios, caboclos,
fi lhos de sitiantes, fazendeiros, muitos moravam em
palhoças no meio daquele matagal, mas todos eles vinham
alegres fazendo a maior algazarra. Quando entravam na
sala improvisada de madeiras velhas e coberta de bambu
rachado, todos se silenciavam, os bancos eram pequenas
toras de madeiras, não que derrubassem as árvores, é que
naquele lugar os bancos eram feitos daquela maneira.
Ele olhou, não precisou contar. Eram quarenta e cinco tocos
e só havia quarenta e quatro ocupados. Pensou: "A Maria
não veio, será que a ponte caiu?”. Num pressentimento
levantou, foi até a janela também de madeira e deu uma
olhada, pareceu que o vento lhe dizia alguma coisa, então
pediu para Maneco, que era o menino mais inteligente da
sala, que montasse umas leituras com a turma que ele iria
até a ponte ver se ela não tinha caído, pediu emprestado o
cavalo de Juvenal, este tinha um alazão ágil. Montou no cavalo
e partiu em disparada, no caminho um pressentimento lhe
mandava cortar por um atalho e subir de encontro às correntezas
do rio, puxou as rédeas, o cavalo refugou, mas obedeceu
e eles se perderam no denso matagal, logo avistou o rio que
estava bravo, tinha chovido demais, desciam troncos, uma
onça se esforçava para se manter agarrada a um deles. Tomou
rumo subindo contra o rio e na curva mais próxima levou um
grande susto, lá estava Maria descendo rio abaixo agarrada
em um pedaço de pau que outrora fora parte da ponte. Pensou
em se jogar na água com o cavalo, mas morreriam os três,
nadar nem por sonho, desceu com o cavalo, acompanhando a
trajetória de Maria, que lutava desesperada para não se soltar.
O pior: ela estava se aproximando da onça, rezou apavorado,
mas Maria chegou, as toras se trombaram; a onça, no sufoco
que estava, nem ligou para Maria, caiu na água e saiu nadando.
Graças a Deus, pensou consigo. Só então lembrou que na
sela poderia ter um laço, nunca fora boiadeiro, mas tinha de
tentar. O jogou e errou feio, jogou de novo e passou longe, então
amarrou bem o laço na sela e na cintura e se jogou na
água, sabia nadar e logo alcançou Maria. Quando a agarrou,
ela sorriu como uma criança no colo da mãe.
Gritou para o cavalo, mas ele não se mexia. Xingou, berrou
e nada, então, com um braço na cintura de Maria, com
o outro arremessou um pedaço de pau no cavalo, que levou
um susto e os arrastou alguns metros a mais do que devia.
Quanto mais ele gritava para o cavalo parar mais o cavalo
corria mato adentro os levando junto. Foi então que Maria
gritou com o animal, chamando-o pelo nome, e ele parou.
"Só porque é mulher ele parou", pensou.
Quando chegaram na frente da escola todos os alunos
os cercaram, ganharam aplausos e por sorte ninguém estava
machucado.
Descansou um pouco e resolveu terminar com a correção
dos exercícios das aulas passadas. No término da aula,
Maria veio lhe agradecer e perguntou como ele, um professor
tão efi ciente, estava ali naquele fi m de mundo enquanto
poderia muito bem estar em uma cidade grande dando
aula e ganhando bem.
Olhou para Maria e pareceu que de seus olhos caia uma
pequena lágrima, então ele respondeu que há muitos
anos ele tinha o sonho de ser um grande mestre professor.
Mesmo com a morte da mulher, fi cando com a fi lhinha de
cinco anos, resolveu estudar, mas não compensava a vida
dividida entre escola e casa, ainda mais que ganhara a
conta porque tinha que fazer muitos estágios, era pedreiro
de dia e de noite estudante. Tentou levar no peito e na
coragem mais as coisas se tornaram uma bola de neve, e
para piorar a menina estava muito doente, cada vez que ia
à busca de uma consulta demorava meses e até anos para
que fosse atendida, e um dia, quando voltava da escola,
cansado e desmotivado, viu que em sua casinha, velha e
improvisada, de latas e paus, havia um carro branco e algumas
pessoas. Levou um choque. Quando entrou, viu que
sua fi lhinha já não estava presente. Perguntou apavorado,
e lhe disseram que teria que ser forte, pois ela agora estava
descansando. Então ele compreendeu que tinha perdido
mais alguém para a miséria precoce da vida.
Maria viu que ele disfarçava as lágrimas, lhe abraçou, lhe
deu um beijo no rosto e perguntou:
– Mas porque não fi cou na cidade? Poderia sofrer menos
que aqui, teria mais recursos, até para ensinar!
Ele olhou seriamente para Maria e disse:
– Sei que não sou um Mestre cujas qualidades superam
os outros, é que na cidade para ter essa vida que você acha
que eu mereço, para comprar um carro, um apartamento,
uma casa boa e um plano de férias e de saúde, teria que
fazer por um bom tempo de minha vida um monte de horas
extras, e quem sabe por excesso de trabalho eu pecaria
contra a minha verdadeira intenção de ensinar, pois
excessivamente trabalhando para pagar minha comodidade
estaria talvez não ensinando como estou ensinando
aqui. Não tenho nada, tenho quarenta e cinco alunos que
amanhã serão o orgulho de uma nação e que com certeza
terão uma vida melhor do que a minha. Agora vamos
embora que você vai ter que fazer uma volta enorme para
chegar na tua casa. Fala para seu pai usar madeira de aroeira
que é bem mais resistente.
O professor
do sertão
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
Postagens mais visitadas
FESTIVAL INTERNACIONAL DE CURITIBA
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
Comentários
Postar um comentário